Santos populares perpetuam a fé e ancestralidade nos cemitérios

Devotos de santos populares, como Dr.Camilo Salgado e o "Menino Zezinho", costumam visitar os cemitérios públicos em homenagens por supostas graças alcançadas.

Crédito: Paula Lourinho

Com a proximidade do Dia de Finados, neste domingo, 02 de novembro, os cemitérios públicos de Belém se preparam para receber milhares de visitantes. Entre eles, um público específico: as pessoas que cultuam os chamados “santos populares”

Muitos fiéis consideram alguns túmulos pontos de peregrinação, e atribuem às pessoas enterradas ali, a capacidade de interceder por milagres e pedidos.

Crédito: Paula Lourinho

Túmulos de “santos populares” recebem flores, velas e homenagens de pessoas que dizem ter alcançado graças pelas suas intercessões

As histórias de suas supostas santidades e os relatos de graças alcançadas são transmitidos principalmente pela tradição oral, de geração em geração, entre as famílias paraenses. 

“Menino Zezinho” e seus encantos no Soledade

No centenário Cemitério da Soledade, no bairro de Batista Campos, inaugurado em 1850 e que, recentemente, passou por obras de restauração e conservação, um dos túmulos mais visitados é o do “Menino Zezinho”

Segundo registra a cartilha do Cemitério, documento elaborado pelo Departamento de Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural (DPHAC), da Secretaria de Estado de Cultura (Secult), Zezinho está associado aos erês das religiões de matriz africana, e seus devotos conferem a ele muitos pedidos relacionados às crianças e aos jovens.

O garotinho chamado José, que faleceu a 13 de fevereiro de 1881, ainda no século XIX, enternece fieis e visitantes do seu túmulo, com sua figura angelical em uma estátua.

Crédito: Paula Lourinho

O jazigo do “Menino Zezinho” é um dos mais procurados no Cemitério da Soledade

Passados mais de 140 anos de sua morte, ainda hoje a sepultura recebe homenagens em forma de brinquedos, bombons, água e alimentos. São presentes de fiéis, em agradecimento por supostas graças alcançadas pela intercessão do menino Zezinho.

Um dos devotos de Zezinho é o servidor público federal Álvaro Pinto, 71 anos. Não há uma única segunda-feira na qual ele deixe de rezar e agradecer aos “santos populares”cultuados no Soledade.

A devoção começou quando Álvaro tinha apenas 13 anos de idade. Foi desde aí que ele resolveu pedir proteção nos estudos para a “Santa Raimundinha Picanço”, enterrada no Cemitério da Soledade e considerada a Padroeira dos Estudantes no imaginário popular.

Crédito: Paula Lourinho

O servidor público Álvaro Pinto frequenta o Cemitério da Soledade há quase 60 anos, para agradecer aos “santos populares” cultuados no local

Quase 60 anos depois, o servidor público repete, em todas as segundas-feiras, o ritual da peregrinação por cinco túmulos de “santos populares” no Cemitério da Soledade: Raimundinha Picanço, Preta Domingas,Escrava Anastácia, Menina Januária e, por fim, o túmulo do menino Zezinho.

“Devo tudo o que sou, como servidor público federal efetivo, a eles. Passei no Concurso da Receita Federal com apenas 18 anos. Como católico, acredito que eles não são santos, porque a Igreja não os reconhece, oficialmente, mas são almas que evoluíram e necessitam de nossas orações e pedidos. Eu só tenho a agradecer a eles por tantas graças alcançadas, na carreira e na vida”, revela o fiel servidor.

Comércio “abençoado”

A fé e gratidão devotadas aos chamados santos populares envolve, também, um trabalhador do Cemitério da Soledade. Francisco de Jesus, 60 anos, vende velas desde os 15 anos de idade no local. “Toda segunda-feira eu acendo um pacote de velas para o menino Zezinho. Eu prometi a ele que iria fazer isso, em agradecimento à minha saúde e a da minha família. Eu acredito muito que ele ajuda as pessoas, de tanto ouvir as histórias, aqui. As pessoas pedem as mais variadas coisas, e ele atende”, relata o vendedor.

Crédito: Paula Lourinho

O vendedor de velas Francisco de Jesus também se tornou devoto do “Menino Zezinho’, em agradecimento à saúde e suas vendas, que já duram 45 anos no local

O médico caridoso adorado em Santa Izabel

No bairro do Bengui, está localizada a maior necrópole pública de Belém: o cemitério de Santa Izabel. Fundado em 1870, tem mais de 145 anos de história e abriga jazigos e túmulos de personalidades paraenses. 

Crédito: Paula Lourinho

O Cemitério de Santa Izabel ainda está em funcionamento para enterros, e é a maior necrópole pública de Belém

Logo na entrada do cemitério, está um dos túmulos mais visitados entre os chamados santos populares do lugar. O do médico Camilo Salgado, fundador da primeira Faculdade de Medicina do Pará. Em 1938, o clínico- geral morreu de infarte, com 48 anos, em casa.

Dr. Salgado foi conhecido por sua imensa bondade, atendia pessoas de graça, e chegou a ter uma farmácia que faliu por doar remédios a pacientes pobres. A partir de sua morte, as pessoas já começaram a venerá-lo. Em seu túmulo, já ocorreram pequenos incêndios proporcionados pelas inúmeras velas acesas, em agradecimento por supostas graças alcançadas.

Seguindo os passos do médico que fez história no Estado, estão o neto e bisneto de Dr. Camilo Salgado. Cláudio Salgado, bisneto de Dr. Camilo, conta que, tanto ele quanto o pai, Ubirajara, costumam ouvir muitos relatos de pacientes, ao se depararem com o sobrenome em comum, e a foto de Dr.Camilo em seus consultórios.

O neto e bisneto do Dr. Camilo Salgado se comovem com tantas histórias de curas, através das promessas feitas ao caridoso médico.

“Acredito que há algo que não conseguimos explicar, que transcende a racionalidade.
Manter viva essa adoração ao meu bisavô, mesmo depois de tanto tempo, sem nenhuma propaganda, nem ninguém da família divulgando isso, é um fenômeno encantador do imaginário popular. Perceber meu bisavô vivo, de uma forma tão carinhosa e grata, me impressiona até hoje”, destaca Cláudio.

Gratidão de mãe pra filha

Entre os inúmeros devotos de Dr. Camilo Salgado, está a psicóloga Karen Mendes, 56 anos. Todas as vezes em que ela visita os túmulos dos parentes enterrados no cemitério de Santa Izabel, faz questão de colocar flores no jazigo de Dr. Camilo.

Crédito: Paula Lourinho

A psicóloga Karen Mendes se emociona quando lembra como o espírito de Dr. Camilo Salgado ajudou sua mãe

Nos anos 80, quando Karen era criança, viu sua mãe, hoje falecida, se “curar” pela intercessão de Dr. Camilo Salgado. Sofrendo com um problema de pele, que nenhum médico conseguia diagnosticar, dona Maria viu sua doença desaparecer depois que começou a rezar no túmulo de Dr.Camilo.

“O sentimento que me move, toda vez que venho aqui, é o de gratidão a um trabalhador do plano espiritual, pela ajuda tão importante a minha mãe. Que ele possa continuar sendo um intercessor diante dos espíritos maiores, como Jesus e Maria, para continuar ajudando as pessoas”, relata, emocionada, a psicóloga.

Dr. Camilo Salgado, o “Menino Zezinho” e tantos outros “santos populares” de Belém não foram canonizados pela Igreja Católica, mas se transformaram em símbolos de fé que atravessam séculos. Refletindo o sincretismo e a religiosidade popular, tão característicos da cultura amazônica. Entre os céus e as florestas, há muito mais do que se possa imaginar.

Compartilhe: 

Veja também

Pesquisar