Zélia Amador: a guerreira incansável em consertar o mundo

No início dos anos 1950, uma mulher de 15 anos engravidou na ilha do Marajó. A criança cresceu ouvindo da avó, doméstica de um rancho, que a vida é bruta. Queria lhe proteger do destino conferido à sua filha, e acreditava que o estudo era a única saída. Foi assim que, ainda bebê, ela veio morar em Belém. O pai fugiu da responsabilidade. A criança foi criada, na realidade, pelos avós, de quem herdou a bravura marajoara.

Desde cedo começou a sentir na pele o preconceito racial. A menina de nove anos tinha muita facilidade com os números e passou, a pedido da freira de sua escola, a dar aulas para seus coleguinhas de turma. Mas a intrépida garota também adorava dançar e vibrou quando surgiu a oportunidade de integrar um grupo do colégio. “Mas na hora da escolha, eu fui preterida. A freira falou que só podia dançar quem fosse “ajeitadinha” e “bonitinha”. Engoli o choro a seco e falei que não iria mais ensinar matemática, como ela queria”, revela.

Foi com essa altivez e resiliência que a menina Zélia se transformou em Zélia Amador de Deus, 70 anos, uma das vozes mais potentes do movimento negro, das mulheres, e minorias no estado do Pará e Brasil. Da liderança na paróquia católica da qual fazia parte, na universidade, até a militância em partidos clandestinos, “Eu nunca parei de pensar que a gente podia transformar o mundo. E penso assim até hoje”, diz Zélia Amador.

Zélia ajudou no processo de formação da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH) no final dos anos 1970 e em 1980 ajudou a fundar o Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (Cedenpa), organização dedicada a combater o racismo e as desigualdades que afetam principalmente a população negra e indígena. Entre as conquistas do Cedenpa está, através da Constituição Federal, a titulação de terras para as comunidades remanescentes de quilombos. Outra vitória foi trabalhar junto à Constituição de 1988 para transformar o racismo em crime. Antes disso, ele era considerado apenas uma contravenção.

Mulheres Negras

Zélia Amador também foi decisiva para ajudar a enxergar as especificidades do movimento negro dentro do feminismo. “As mulheres negras experimentavam uma tripla discriminação, por serem mulheres, pretas e pobres. O que Ângela Davis chama de mulheres, raça e classe”, pontua Zélia.

O Cedenpa foi criado em sua maioria por mulheres e teve uma inserção importante no movimento feminista negro. Tanto que até hoje faz parte da Articulação Nacional de Mulheres Negras. O movimento ajudou a organizar a 3ª Conferência Mundial Contra o Racismo e Discriminação Racial que aconteceu em Durban, na África do Sul, em 2001, considerado um momento histórico para os debates em torno do tema.

Professora Emérita

No ano passado Zélia Amador recebeu o título de professora emérita da Universidade Federal do Pará. Um reconhecimento a uma das grandes responsáveis pela instituição ter avançado tanto nas políticas de inclusão. Zélia Amador é professora da UFPA desde 1978, onde já ministrou disciplinas como História da Arte, Estética e História e Teoria do Teatro.

Zélia Amador de Deus possui graduação em licenciatura plena em Língua Portuguesa, especialização em Teoria Literária, mestrado em Estudos Literários e doutorado em Ciências Sociais. Ela já foi vice-reitora da UFPA, de 1993 a 1997, e atualmente ocupa o cargo de assessora da diversidade e inclusão social da UFPA, órgão diretamente ligado à Reitoria, criado pelo reitor Emmanuel Tourinho em 2016. Zélia foi a primeira ocupante da função e também foi a primeira docente negra, e a segunda da área de artes, a receber o título de Professora Emérita.

A luta da professora Zélia sempre foi para que a universidade refletisse a realidade social da Amazônia. Para isso ela criou, em 2003, o Grupo de Estudos Afro-Amazônico (Geam). Através do Geam, Zélia ajudou a UFPA a desenvolver pautas fundamentais como a política de cotas, a casa Brasil-África, e a assessoria de diversidade.

A atuação na UFPA fez ainda Zélia, que quando menina foi excluída da apresentação de dança da escola, idealizar uma das mais importantes e belas manifestações artísticas de Belém: o Auto do Círio. Durante o período do Círio de Nazaré, o cortejo ocupa as ruas do bairro da Cidade Velha, onde Zélia fez morada, com uma celebração de fé e cultura popular.

Mês da Mulher

Apesar do apelo comercial da data, Zélia Amador vislumbra a importância do 8 de Março, Dia Internacional da Mulher. “O patriarcalismo construiu essa mulher como um apêndice, como se não fosse um ser humano completo. Então esse 8 de Março é um símbolo dessa luta no Ocidente. É importante que a gente tenha datas. Os grupos considerados inferiores pelo patriarcalismo e sistema capitalista precisam sempre trazer à memória a importância da organização, para continuar lutando e serem considerados humanos”, pontua Zélia Amador.

Apesar de toda a luta e representatividade conquistada, Zélia Amador de Deus se derrama em humildade e aposta na nova geração para seguir seu legado. “Se você se considera realizada, é porque você se acabou. Eu estou fazendo minha parte, tentando de alguma forma fazer com que a sociedade fique melhor para alguns grupos que sempre foram vilipendiados. Mas se eu morrer hoje ou daqui a pouco, sempre fico achando que outras pessoas chegaram e estão na luta, e por isso, ela vai continuar. Sou apenas aquela que um dia resolveu seguir a luta de outras que vieram antes de mim. Façamos a nossa parte”, destaca a autora de dois livros e uma das mulheres mais atuantes da militância nacional.

De onde estiver, “Dona Chiquinha”, a avó de Zélia, certamente é só orgulho da neta dançarina, inquieta, e de mente fervilhante. A mulher que ela educou ajudou milhares de Marias e Clarices a se enxergarem neste solo do Brasil. Mulheres, pretas, e ricas de alma e representatividade.

Texto: Syanne Neno

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